terça-feira, 16 de agosto de 2011

rostos descalços | luís de aguiar





as mãos arranham o interior da carne,
pelos tendões, abrem as feridas, rompem
as palavras em sede. a sede. as mãos levam
nas falanges
o riacho das vogais, e esperam por ti,
para te acariciar os vários rostos, descalços,
enxutos, rostos que nasceram da rua para a rua.
e as mãos escondem o suor, escavam
com mais violência, a côncava do seio negro.
as mãos esgotam-se nos calos, as mãos
separam as espumas brancas das conchas raras,
e repousam o sopro com o peso do olhar.
as mãos, as mãos, as mãos.
só as mãos tecem o sangue nos desígnios
dos volumosos corpos.



as pessoas arrastam-se pelas ruas,
definham os seus rostos contra as montras.
petrificam-se sem a volúvel pele que as cobre,
procuram, incessantemente, nos vidros do céu,
um espelho, um deus. procuram a imagem
das suas vozes. são humanos, inalteráveis,
e arrastam-se em sorrisos longos, em sorrisos
moribundos, nos seus corpos gastos.
e nenhuma sílaba é arrancada das suas bocas,
nenhum eco, nenhuma vida.
as pessoas fingem serem pessoas e misturam-se
ao movimento dos carros, misturam-se à sede
dos cães vadios, misturam-se ao rastro de sangue
que as velhas casas deixam nas pálpebras de pele.
os corpos erguem os braços, quase que rasgam
os pulsos ou os ombros, recostam-se à luz dos dias
e voltam a arrastarem-se pelas ruas, cientes que
a solidão, um dia, há-de entrar numa gota de lume.



subias as escadas de lisboa, subias os degraus
com as pernas secas, moídas.
subias o teu corpo com uma chama silenciosa,
para roeres o interior da tua face, e tocares
a carne da tua alma. inspiravas o cheiro
das casas de alfama, o mijo na rua a misturar-se
com os teus sapatos rotos, com a pele calejada
pelo choro do teu filho, da tua mulher, da tua mãe.
subias os degraus até à tua fé, subias lentamente,
mesmo antes de te rasgarem a camisa
e roubarem-te as poucas moedas
que tinhas no bolso e que eram para a tua morte.


Prémio de Poesia Montijo Jovem 2005


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